Por Guilherme Azevedo, jornalista
Este ABC vem sendo cantado diariamente, faça chuva ou faça sol, feriado laico ou santo, na frente do edifício-sede do Grupo A Verdade, que edita os diários A Verdade e A Verdade Sangrenta e o semanário A Verdade Rosada.
Alencar Almeida – chapéu-coco na cabeça, óculos escuros de grossa lente, camisa xadrez, calça de brim, bengala branca, viola na mão direita, chinelo branco de dedo e prato de alumínio para esmola no chão – é o
repórter disfarçado de cego, esmoleiro e cantador.
Pela manhã e à noite, na chegada e na partida do senhor Rosebud, o Diabo, dono e publisher de A Verdade, no curto trajeto entre o alto prédio e o
longo carro negro que leva e traz o ex-patrão do nosso herói, Alencar Almeida tange o seu ABC na violinha.
Entre os dois pontos, são 113 seguranças e onze segundos cronometrados, o que equivale, em média, em ritmo acelerado, a uma estrofe, estrofe e meia, antes de o senhor Rosebud adentrar o seu cupê e nosso repórter ser muito gentilmente arremessado, com mala e cuia, ao outro lado da rua.
Se hoje a execução do ABC pára no meio da letra D, por exemplo, recomeça amanhã do mesmo ponto. E o fato é que o senhor Rosebud já ouviu o ABC inteiro, de A a Z,pelo menos duas dúzias e meia de vezes. “Mandem esse
cego pro diabo!”, já virou ali refrão.
Eis o ABC, de A a Z:
Avante, jovem repórter!
Vá com fé no seu caminho
Com a pauta do coração
Largue essa aí no escaninho
Dicas de plástica? Não!
Basta de assunto daninho
Bendito o seu destino
Sempre avesso ao disparate
De falar sempre do rico
De Mileide, socialate
Se lá na Cohab não há
Dinheiro nem para o mate
Cuidado com o editor
Do que será que ele ri?
Será sorriso sincero
Ou mais fino bisturi?
Que corta a ânsia de justiça
Qual facão pobre siri
Deixe a sua Musa o guiar
Acredite em seus sentidos
Se a sua alma disser que sim
Siga até de olhos cerzidos
A pauta boa já ressoa
Está no ar, em seus ouvidos
Escreva sobre o sem-voz
O largado à própria sorte
Sobre quem vira manchete
Apenas na hora da morte
Louvando quem bem merece
Ferindo ladrão de porte
Fuja dessa redação
Jornalismo sem a rua
É pura adivinhação
É só em foto ver a lua
Propaganda de cosmético
Viagem em furada falua
Golpeie, só se necessário
Sua palavra, sua arma
De fino grosso calibre
O amor à Justiça, seu darma
Sua guerra, sua calma
A insatisfação, seu carma
Hoje, anteontem, amanhã
No seu caminho imutável
Sempre em busca da poesia
Na trilha do indispensável
Do fútil tem alergia
Acha o novo desconfiável
Incorruptível eterno
Pois não valoriza a grana
Nem carro, luxo ou cargo
De sua convicção emana
Doce aroma, clara chama
Ao leitor jamais engana
Jornalista que se preza
Pois trabalho é sacerdócio
Pelo bem da maioria
Com a pena não faz negócio
Texto não é moeda de troca
Nem momento de ser dócil
Lide, prisão do bom texto
Sêmen da esterilidade
Eles dizem que é ciência
Para chegar à verdade
Mas você, repórter, sabe
Que é pura comodidade
Meça toda a sua cidade
Ande muito, muito a pé
Ouça a voz que vem das dores
O grito mudo, sem fé
Jamais duvide do choro
Da Maria pelo Zé
Namore a sua realidade
Ela lhe espera lá fora
Ela lhe sorri, o chama
Reclama, por você implora
Não dê uma de cego, surdo
Olhe a Primavera que aflora
Oriente-se pelo céu
Seu amor, astronomia
Guie-se também pelo chão
Sua certeza, geografia
Seu sonho gira feito astro
Sua ação reta como guia
Prepare-se para o não
Para muita, muita pedra
E não tema, pois diz Tao
Palavra sábia, bem vedra:
O universo favorece
Os bons, a eles sempre medra
Quimera, ali é o seu reino
Onde reencontra igualdade
Jornalismo, amor, poesia
Sua suma Santa Trindade
Mas qual! Que triste surpresa!
Abre o olho, é só falsidade!
Realidade, exemplo da
Melhor grande reportagem
Jornalismo com poesia
O povo sem maquilagem
Texto com profundidade
Escrito após muita aragem
Ser a cada dia mais simples
Sábio, correto e sensível
É o único objetivo
Apalavrando o indizível
Emocionando a razão
Tingindo o supravisível
Todas as formas, palavras
Sentimentos, sensações
Todos os ritmos, períodos
As vozes, interjeições
Jornalirismo: aqui pode
Tudo, menos restrições
Umbrosos tornaram os campos
Mas brilhante o seu fino aço
Curvilíneos os caminhos
Mas retilíneo o seu traço
Estreitas as parcas sendas
Mas ampla a chã, seu regaço
Virtuose em descobrir almas
Em revelar na entrevista
O melhor que há de cada um
Sempre garimpa a ametista
Onde tantos só acham breu
Do real é fiel retratista
Xeque-mate, match point
Na falsa neutralidade
Jornalista tem sim lado
É fraude a sinceridade?
Boa a verdade do patrão?
Chega de passividade
Zéfiro traz a Boa Nova
Vem aí outro jornalismo
Bem mais humano, mais real
Repórter salvo do abismo
De volta ao centro da rua
Vida sem ilusionismo.
sexta-feira, 3 de setembro de 2004
ABC DO REPÓRTER MARGINAL
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