São pessoas que cruzamos pelas ruas diariamente. Às vezes estão mais presentes no nosso cotidiano, que nossa própria família. Mas como é a realidade - não dos donos da rua - mas, dos moradores das ruas? Pessoas que estão presentes, mas que nunca procuramos saber quem realmente são. Por medo? Por nojo? Por preferir ignorar? Seja qual for o motivo, a verdade é que quando conversamos com essas pessoas, vemos uma outra verdade. Aquela que vai além da noticiada, que vai além do que se vê, que acaba com o medo, com o nojo, com a ignorância e, muitas vezes, podemos inclusive nos identificar. No dia 4 de setembro de 2008, estivemos conversando com um grupo de moradores de rua procurando quebrar barreiras e acabar com preconceitos que não têm razão de existir.
Entrevistaram: Claudia Cardoso, Gustavo Türck, Têmis Nicoladis, Rafael Corrêa, Licurgo Urquiza, Eduardo Seidl, Cássio Maffazziolli, Nanda Isele Gallas Duarte, Manoel Madeira, Natália Alles, Clarinha Glock, entre outros.
Gustavo Türck [GT]: E gostaria que vocês começassem, se apresentando e falando um pouco do próprio projeto do Boca de Rua e da situação de vocês mesmo. E aí nós vamos abrir, é livre, é bem em clima de bate-papo pra ser bem informal, né?
Adriano [Don]: Prazer, meu nome é Adriano da Silva Bandeira, faço parte do jornal dos moradores Boca de Rua...Muitas coisas que eu fazia de errado... o jornal mudou a minha vida. Agora é trabalho, eu vendo o meu jornal... Na sinaleira, eu não vendo o meu jornal. Eu vendo o meu jornal onde eu trabalho no Senac, ali no Senac na Cel. Genuíno, aí quando eu vou cuidar os carros dos meu cliente, aí já deixo... Bah, tu é do Boca de Rua? A gente já viu esse jornal na TV. Pois é, eu trabalho nesse jornal agora. Agora vai fazer sete anos que eu trabalho no jornal Boca de Rua. Que eu entrei no jornal, quando o jornal fez 1 ano. Agora, eu já sou mais um rapper, né, eu era rapper, mas eu... deixava um pouco o rapper pra fazer as coisas de errado que eu fazia antes. Eu cheirava cola, andava na rua assim, bah, pra mim era uma bagunça a rua... Eu tava sempre no meio das pessoas, assim, querendo mexer, roubar... Agora, eu não faço mais isso. Agora, se eu não tenho nada para mim fazer, eu descanso, porque eu trabalho de noite. O Manoel foi lá me ver, lá... Bah, Don, como tu conhece todo mundo aqui? Mas claro! Moro lá desde os 6 anos. Não é, Manoel? Eu conheço todo mundo lá.
Maneco [M]: Bom dia, meu nome é Roberto dos Santos Fogaça, sou parente do Fogaça, mas sou morador de rua porque eu gosto muito de ficar na rua... Faz 3 anos que eu to na rua... Moro no Jardim Planetário. Nós perdemos um monte de parceiro já, não é nem 1 nem 2, perdemos a Chineza que agora foi pouco tempo aí, estamos um pouco chocados, a realidade é ruim, o jornal tá crescendo cada vez mais e vai ficar muito bom. Sou morador de rua, mas tenho casa, mas não gosto de ficar em casa. Gosto de ficar mais com os meus parceiros. Nem gosto de falar muito, dá vontade de chorar, sempre fui um cara chorão...Bah, eu não gosto de falar muito. Gosto muito de morador de rua. Não gosto de rico, meu irmão. Rico quer ver o pobre lá embaixo. Agora, nós vamos ter um filhinho que vai nascer, aí, coisa mais linda, com a Michele – ela não está aí...
Gilmar [Gi]: Eu desejo boa tarde, meu nome é Gilmar, eu trabalho no Boca de Rua... Eu entrei nesse trabalho, através de uma senhora, que é a dona Rosina. Encontrei ela lá na Rua da Praia, aí ela perguntou: “Olá, tudo bom, tranqüilo...eu to te convidando pra entrar, aí, num trabalho que a gente tá investindo. É um trabalho que a gente tá unindo as pessoas, aí, pra quem quiser trabalhar... A gente fica muito agradecido...que é através do jornal Boca de Rua”. Só quando inaugurou o jornal, nós começamos lá na praça do Rosário. Lá onde tem o cachorro-quente, lá, onde tem o Colégio do Rosário. Lá a gente conheceu um monte de pessoa e várias amigas lá... E foi ali que inauguramos o nosso trabalho de jornal. E eu só tenho uma coisa pra dizer, eu gostei de trabalhar...eu espero que o jornal nunca acabe...eu só espero que o jornal continue...Às vezes eu ando por aí perdido de noite, daí eu fico pensando... Quando eu era de menor, eu fazia várias coisas erradas. Eu pegava, fazia coisas que não era para mim fazer, porque eu peguei isso aí na Febem. Quando eu caí na Febem da Cruzeiro, fiquei quase 1 ano lá... Mas eu gostei, era muito legal o monitor lá... Só que minha família é de Canoas, eu gosto daqui de Porto Alegre, por causa dos meus colegas, das minhas colegas... A noite é cruel, né... Eu respeito as pessoas para ser respeitado... eu ajo com as pessoas como as pessoas agem comigo. Se a pessoa chegar e falar comigo numa boa, eu falo numa boa. Se a pessoa engrossar, eu também engrosso. Não é que eu quero me aparecer, eu sou igual a todo mundo. Eu não sou rico, eu sou pobre. Para parar na prisão, alguma coisa a pessoa tem que fazer, porque a troco de vão, ninguém vai parar atrás de uma prisão. Então, eu prefiro mais a minha liberdade. E meu nome é Gilmar...
André [A]: Boa tarde senhoras e senhores, meu nome é André Luís, moro na rua desde os 7 anos de idade... Graças ao meu bom deus, eu... através de um colega daqui do jornal, fui convidado a participar do jornal Boca de Rua... Vim parar na rua por motivo de doença... Conheci o jornal Boca de Rua, e vim pra cá, e comecei a trabalhar...Achei o jornal muito legal... Através desse jornal, minha vida mudou muito... Porque eu sempre fui morador de rua, mas eu acredito que na entrada desse jornal, na entrada desse jornal eu voltei de novo pra a sociedade.
Claudia Cardoso [CC]: Vocês são de Porto Alegre mesmo?
Todos: Somos
CC: E alguns estavam na rua desde criança, né?!
M: Desde 12 anos...
Don: Desde os 6 anos. Saí da rua com 30 anos... Morei 23 anos na rua.
CC: E aí também vocês falaram que o jornal mudou a vida de vocês.
Todos: Mudou totalmente.
CC: Vocês poderiam falar mais um pouco assim, o que foi mudar a vida? Permanecem ainda na rua, correto? Então, o que é esse mudar a vida de vocês no trabalho com o Boca de Rua?
A: Acontecia assim...eu não tinha uma coisa para me ocupar, e daí eu ficava na rua pensando bobagem, quando vê já caía nas droga, já andava que nem um mendigo, todo sujo, já não se preocupava com mais nada, entendeu? E agora não, agora eu tenho uma coisa para me ocupar e já não penso muito nisso. Já não tenho tempo pra estar pensando. Agora, se eu ficar na rua, realmente, eu não vou ter nada pra fazer, aí vou pensar em fumar uma maconha, um crack... Então, por isso que eu digo que mudou um pouco a minha vida. Não digo que mudou totalmente, porque, hoje, ainda continuo na rua. Mas acho que para mim é um ponto importante.
CC: Nem eu estou questionando a questão de morar na rua, que já é uma questão de identidade, de uma forma de viver, é uma outra socialização.
Don: Sobreviver na rua é um inferno.
CG: Agora em período eleitoral, vem muitas promessas e eu tenho encontrado alguns dos meus colegas moradores de rua reclamando, que as coisas têm se acirrado...nesse período de frio em vez de tá fazendo alguma coisa, estão tirando os cobertores, estão deixando o pessoal no frio, que continuam os achaques da polícia, aquela coisa toda, que a gente vem denunciando há 7 anos. Então, eu queria que vocês pudessem falar um pouco, assim, qual é a expectativa de vocês neste período em que está elegendo uma pessoa que vai cuidar da cidade...
M: Só falam que vão cuidar da cidade, e quando vê, faz tudo errado. O cara vota, vota nele e, quando vai ver, ó...
Don: Eu tenho 31 anos, eu nunca tirei o meu título, porque eu não gosto de votar...Eu não voto em ninguém, se eu for votar, só em branco. Eu não voto em ninguém, são tudo ladrão... Eles começam a rir, falar tudo de bom, é só no começo...
CG: Tá, então o que poderia ser feito pra realmente mudar, ou, pelo menos, melhorar...
M: Ah, mais trabalho!
A: Mais trabalho...
CC: Entra governo, sai governo e as coisas permanecem igual?
A: Mesma coisa, não muda nada. Eu vou retornar no que a senhora falou... Isso sim, recolher os cobertores, isso continua acontecendo. Eu sou um que durmo ali no Pronto Socorro e, hoje de manhã, a gente tava dormindo, tava frio. De repente, encostou dois motoqueiros e um caminhão do DMLU, eles levaram todos os meus dois cobertores, o meu colchão. Aí, eu disse pra ele: pô cara, se quer que eu tire daqui, eu tiro daqui. Dobro e levo comigo. “Não, não vai levar”. Botaram pra dentro do caminhão e foi embora.
CG: E eles não oferecem a oportunidade de levar vocês para algum lugar?
A: Não. E a respeito de albergue, realmente, existem 3 albergues: o Dias da Cruz, fica lá no Navegantes e o abrigo municipal. Mas, aí, eu digo assim, são 1700 moradores de rua, 3 abrigos não cobrem tudo isso. Sendo que cada um tem uma meta de entrar. Vamos supor: municipal, são 150 vagas. Se entraram 150, não importa que tenha 70 lá na rua, vão ficar na rua. Eles falam: é só aquela quota ali e deu. Então, eu penso assim, ó: 1700 moradores de rua...eu acho, até hoje, que deveria abrir mais uns dois albergues...
M: Vai continuar gente na rua!
CC: Porque albergue é pra tomar banho, pra tomar café...
Don: ... abrigo é pra morador de rua, pra ele não dormir na rua no frio. Mas se ele não tem identidade, ou um Boletim de Ocorrência (BO), ele não entra. Se ele tá sujo vai numa delegacia fazer um BO... Ele não faz, não deixam nem ele entrar numa delegacia! Onde é que ele vai dormir? Não pode entrar no abrigo, porque ele não tem documento. Ele podia entrar, tomar um banhinho, comer uma comida quente, dormir, e amanhã ele sai de lá. Mas não pode. Isso aí tá errado ele tinha que ter um cartão, fazer um cartão. Identidade, não! Um cartão do abrigo.
GT: Como é que fica, depois que os caras tiram o cobertor de vocês?
A: O que a gente tem é que correr atrás e, de repente, a gente tá dormindo ali, encosta de novo e levam de novo.
Don: Que nem nós... Meu primo tava na ponte dormindo com a namorada na rua e, aí, chegou a SMAM. Chegou o DMLU. O guarda municipal não pode andar armado. Chegou a camionete da SMAM, mais uma caçamba. Algemaram ele. Botaram ele sentado no muro assim da ponte... quando eu vi pegaram o carrinho do meu primo. Eu fui pegar o carrinho...me deram uma paulada também. Aí eu fui ali naquela mulher dos Direitos Humanos. Cheguei ali ela tava... tinha uns dez ali. Aí chamei ela. Ela nem olhou para a minha cara, tava tomando um cafezinho...eu chorando, com dor nas costas. Tem uns que gostam da gente, tem outros que não gostam...
Manoel Madeira [MM]: A Brigada Militar também...a gente sabe que ela está com uma política bem mais agressiva. Como é que vocês estão percebendo isso na rua?
M: Ontem tava eu e a Michele, minha mulher que tá grávida, mais dois parceiros... Daí chegou aquela blitz da Brigada, não veio sozinha, veio com mais uns caras de moto. Aí, tava dormindo lá, quando veio, chegou lá ...”vamos se acordar aí vocês”... mandaram chamar nós pra um canto, e encostou a viatura... “vamos deixar esses bagulhinhos de vocês, esses trapos aí, vamos entrando pra viatura”, fomos entrando a coiçada. Era dez horas da manhã, sabe que horas nós saímos? Três horas da tarde, meu. Tomamos um chá de banco lá, com fome, não deixaram nem usar o banheiro deles lá.
CG: Qual foi a acusação?
MM: É, por que pegaram vocês?
M: A gente tava dormindo embaixo daquele apartamento ali, tá ligado? Tem um baita dum apartamentão ali, nessa rua ali... E aí chegou uma mulher do apartamento... até a mulher não escapou, meu... uma brigadiana mandou ela calar a boca: “Cala essa tua boca, tu não tá vendo o que eles estão fazendo? Dormindo aí embaixo fazendo uma sujeirada...” Ninguém tá fazendo sujeirada, quando nós vamos dormir lá deixamos tudo limpinho. Oh, meu, levaram roupas do meu filho que eu tinha comprado, tá ligado? As fraldas, mamadeira, levaram tudo, meu. Os brigadianos levaram... Ficamos lá com fome, naquele chá de banco, só na pedra pura. Fomos sair de lá 3 horas da tarde. Tá louco?
CG: Roberto, quantas pessoas estavam ali?
M: Tava eu, a Michele, o Rafael, o Paulinho irmão dela e aquela guria...
CG: A Michele tá grávida, né?
M: Tá.
CG: Fizeram alguma coisa...
M: E a Michele também tava com aquela a boca... tava gritando com o brigadiano! Aí o brigadiano deu um chute nela, nas pernas dela... Eu falei: oh, não dá nela ela tá grávida! “Não, não, cala essa tua boca aí perneta”. Bah, me chamou de perneta, véio! Tá ligado? Eu não gosto, não foi ele que tomou uns tiros... Brigadiano é assim, né... Brigadiano, tá louco! Mas a mulher do apartamento nos ajudou muito... Mandou a mulher (a brigadiana) calar a boca, aí ela não calou a boca a mulher! Nem a Michele calou a boca pro brigadiano... A mulher ajudou muito nós, meu. Nunca vi alguém pra ajudar o pobre. Primeira vez. De quem é a culpa? A culpa de quem? Quem votou nessa Yeda aí, nada a ver... Essa tia nem faz parte do RS, ela é paulista ainda. Ela faz parte... aonde ela fica? Só fica de convite para jantar, tá com medo...
Gi: Bandido é bandido, polícia é polícia. Hoje em dia, bandido mata polícia e polícia mata bandido. O mundo eu não sei como é que tá...
M: Eu queria que eles tocassem na barriga da Michele...Bah, eu pegava aquele carrinho de supermercado e ia tocar por cima daquele brigadiano! A Michele tá com 7 meses já, tá louco! Ela tá com um barrigão! E o brigadiano chutou nas canelas dela.
A: A respeito da eleição. Eu sou um cara que eu voto, eu deixarei aqui uma pergunta... eu tenho pensado muito nisso...Eu penso assim que...a próxima pessoa que for eleita, eu deixo uma pergunta...o que que elas vão fazer com os moradores de rua?
A: Eu acho que deveria abrir mais cursos...
M: Fazer uma casa pros moradores...
A: Alugar uma casa...
M: Mais serviço... Que só falam em arrumar serviço, quando vê... O cara caminha 3 ruas, 5 ruas... vê se o cara arruma serviço? Eles só mentem pra nós...Só querem fazer o cara votar, votar neles todos os anos. Em vez de ajudar...
A: Eu vejo muito eles fazerem muita promessa, mas, quando se elegem, essas promessas...
MM: Vou pegar, vou pegar essa questão do Rap [Reinserção na Atividade Produtiva] aí? Como é que funcionou o Rap nos últimos 4 anos?
A: Eu trabalhei no 1º Rap.
MM: Quando foi isso?
A: Trabalhei em 2001. Quatro meses, é quatro meses de curso... Eu trabalhei, quando a gente limpou o valão da Ipiranga e limpou a beira do Guaíba.
MM: E nos últimos 4 anos: 2005, 2006, 2007 e 2008...
(...) Mais a frente na conversa...
A: Embora a gente queira fazer o tratamento certinho, alguém que tá na rua... se tu não tem aquele cartãozinho...nem toda a hora a gente tem passagem, né? Como também no caso, nem toda a hora a gente tem comida. Na rua funciona assim...de repente, hoje eu como, amanhã não como e assim por diante. Então, a minha doutora disse: Bah, tem que fazer o tratamento certinho... Mas onde eu vou fazer o tratamento certinho, se eu não tenho como me deslocar toda hora? Fica difícil, né? Claro que eu quero me tratar, quero viver um pouco mais, mas... eu já não tendo isso já me dificulta de eu fazer o tratamento. Então, faz três meses aí que eu ando meio abandonado. Eu ando sentindo um bagulho meio xarope...Daí, tentei procurar o Postão num dia que eu tinha fichinha...Cheguei lá e não tinha mais consulta, ele já tinha fechado a agenda. Então, eu tô correndo atrás aí para ver se eu consigo fazer...carga viral pra ver como é que tá a minha situação.
CC: Mas o acesso aos remédios?
A: Não, o acesso ao remédio é tranqüilo, bem na mão. Eu conheço todos os camaradas meus que se tratam no Postão da Cruzeiro com remédio que eles dão. Vem a requisição da doutora, vai na farmácia...
GT: Precisa de uma ordem da doutora e o remédio depois...
A: O remédio é tranqüilo. O remédio vem na mão. Ela te dá o papel, tu vai na farmácia... de mês em mês e eles te dão a medicação pra tu tomar.
GT: E essa coisa de eles taparem debaixo da ponte, cara?
M: Isso aí é Yeda!
Don: A Yeda que manda fechar tudo.
M: Isso aí é a Yeda!
MM: Não...não é bem isso. Na realidade, não foi a Yeda, na realidade foi o Fogaça, foi o prefeito. Mas, e essas coisas de tapar embaixo das pontes...
CG: Então, essa questão da limpeza das praças, isso piorou? Vocês acham que tá pior, agora, pra achar um canto pra ficar? O que é que vocês acham?
Don: Sabe o que que eles fazem? Eles chegam com aquele caminhão da bomba, aquele que molha as plantas... Ele molha toda a praça, daí acaba tudo molhado. Mais é sexta-feira...Só quando junta muita gente ali na praça ali, cheirando, aí as vizinhas do mesmo prédio que não gosta que eles fazem muita sujeira. Até os caras pararam de dar comida lá...Quando se juntam lá pra esperar alguma comida eles telefonam pro caminhão. O caminhão vem e molham toda a praça.
MM: Nessa parte da comida aí. As pessoas se organizando pra oferecer comida pros moradores de rua: isso aumentou, diminuiu, vocês sentiram alguma...
M: Acho que diminuiu isso aí.
MM: Diminuiu?
M: Bah...
Don: Os brigadianos falaram que não é pra nos levar comida nas praças.
A: Nessa parte aí que o senhor falou dos alimentos, das pessoas que dão rango na rua... Sabe a Praça da Matriz? Eu me lembro que antigamente... antigamente não, há pouco...há poucos meses atrás, a maioria dos moradores de rua iam para ali. E vinha vários rango, ali. Café. Aí, teve uma época que a Yeda cortou várias comidas. E, agora, poucos vão ali. Teve uma época que os brigadianos até correram o pessoal.
GT: Correram o pessoal que tava dando?
A: Correram o pessoal que tava dando rango.
Don: Eles correm.
A: Aí, o pessoal não aceitou. Disse: “Não, nós vamos dar comida pros caras e não vamos sair daqui. Nós tentamos dar um alimento, um apoio pros moradores de rua. E, agora, vocês vêm aqui e, só porque é na frente do Palácio, não podemos dar uma mão pros caras? Não, nós vamos dar o rango aqui e era isso”. E ali era um local que ia bastante gente. Tinha 5 ou 6 refeições ali.
A: Então, eu acho que diminuiu um pouco.
MM: Os caras fecharam as pontes. Tem uma luz ali na Ipiranga... E agora naquele espaço tem uma luz, assim, tri forte. Por exemplo, aquele prédio da Ramiro, onde dormia um monte de gente. Agora, tem luzes tri fortes ali e tal pros caras não... não dormirem. Isso aumentou nos últimos tempos ou não? Essas coisas assim de lugares privados.
David [D]: Não me apresentei, eu cheguei... Meu nome é David. Eu também já dormi na rua faz doze anos, desde pequeno. E essa questão de dormir na rua. A gente tá, assim, com dificuldade bastante...O meu negócio é por aqui na Cidade Baixa, sou guardador de carros. Só que a dificuldade pra dormir é grande, durante a noite eu não durmo. Por causa, justamente, eu passo toda a noite trabalhando. Aí, quando chega meio-dia, chega perto do dia, vou ter que achar um cantinho pra mim dormir. Aí, não tem onde eu dormir, ali tem vários colégios perto, sabe. Aí, eu tô dormindo do lado de um negócio, sempre abre uma loja. “Depressa, que eu vou abrir”. Ah, tudo bem, eu saio. Vou pra um outro lado, quando vejo, vem um brigadiano olha: “Não dá pra dormir aí. Levanta”. Aí, eu não consigo dormir quase. Agora, eu... eu consegui achar um lugar pra mim, que é aqui...(em um edifício). Eu vou lá no fundo, deito lá e durmo. Às vezes a tia...a síndica levanta e...de manhã vem a empregada tem que lavar a calçada. Digo: “pronto, onde é que vou dormir agora, não consigo dormir”...
CC: Aí, são os donos da rua.
GT: Por que vocês não dormem de noite? Qual é... Tem que ficar ligado?
D: É que é assim. Praticamente, quem trabalha durante o dia, dorme durante a noite. Eu trabalho durante a noite, eu cuido carro e, aí, de dia não dá pra dormir. Mais é de noite.
D: O “pessoal do medicamento” é controlado, porque eu tenho problema de convulsão, tenho problema de coração. Eu tava tomando medicamento pra convulsão. Até ontem, eu tive convulsão e veio a SAMU, demorou quase meia-hora... mais de uma hora pra vim. Eu fiquei convulsionando ali praticamente 20 minutos. Graças a duas moças do apartamento foi que chamaram a SAMU. Só que tô sem medicamento já faz 4 meses. Eu tenho ido no posto lá na Cruzeiro, não consegui o medicamento. Eu tive nesses dias aqui no HPS que eu me acidentei da perna, eu cortei o tornozelo...cada vez que eu vou lá eu não consigo consulta, eu não consigo remédio.
CC: Tava em falta o medicamento, ou tu não conseguiu porque faltou um documento?
D: Eu não tenho documento, nem certidão de nascimento. Eu até tava encaminhando o documento pela Previdência. Eu tinha feito o pedido antes, quando eu tava no abrigo da Bom Jesus. Isso já faz tempo. E, aí, eu fui nesses dias na Previdência, falei com a assistente social, ela ligou pra lá, e eles falaram que não veio a minha certidão. Mas como não veio, já faz um tempão atrás que eu fiz o pedido? Aí, eu falei com a da casa de convivência que fica lá na Farrapos. Ligaram para lá também e falaram que não veio. E eu disse então vocês estão me enrolando... Aí, eu fui lá naquele negócio, que eu falei...queriam me cobrar R$35 . Da onde que eu vou tirar R$35?
CC: Tá, mas aí tu conseguiu o medicamento sem documento?
D: Antes eu tinha documento.
D: Quase toda a semana tá me dando convulsão. Porque não to tomando remédio. Periga uma hora eu tá em outro local, de repente eu pego...Eu posso morrer ali sozinho e ninguém vê. Aí, no outro dia vão me achar durinho ali. Ontem, graças a deus...as gurias tavam descendo do apartamento pra me trazer café...e se apavoraram. Eu tava ali me babando todo, não tenho vergonha de falar que isso já é uma coisa comum. Aí, elas se assustaram e chamaram a SAMU. A SAMU passou por mim e depois fez a volta...ela veio, mediu a minha pressão...apaguei, não me levaram pro HPS, nem nada, não me deram medicamento nenhum. Só pegou e me deu um cobertor. Chamaram a FASC, fiquei a noite toda ali, e nem cheiro da FASC.
CC: Tá, e se a FASC tivesse vindo, teria ido pra albergue?
D: Eu ia, né?
CC: Gostarias de ter ido pra albergue?
D: Sim, eu ia.
MM: Mas um coisa que até hoje eu tenho dúvida...se fala, assim, dizem pra ir pra albergue, como se fosse a coisa mais fácil do mundo ir pra um albergue.
D: É, praticamente, eu já tive em vários albergues, mas dois albergues...no Bom Jesus e no Dias, tive na casa de convivência 2, né? E eu tava tentando uma chácara em Viamão, que é... é um... eu sei que tem uma chácara, um negócio de... é uma clínica pra quem tem problema com droga, que eu sou usuário de droga, eu não tenho vergonha de falar, eu cheiro loló e fumo maconha. Mas não fumo pedra, até não fumo crack e só a única droga que eu uso, é só loló e maconha. E eu tinha falado com ele pra me internar nessa clínica. Aí, ficaram me enrolando, me enrolando e também não conseguiram nada.
A: A respeito da SAMU. A SAMU não gosta muito de levar morador de rua. Já teve casos, que eu vi a pessoa chamar, o próprio morador chamar a SAMU e a SAMU vir: Não, morador de rua não vamos levar.
D: ...foi o caso do Diego morreu e a SAMU não veio pegar ele.
A: Tipo assim, uma comparação. Assaltaram ali, aí tem 3, 4 moradores de rua. O primeiro ataque é nos moradores de rua. Infelizmente, não todos, mas a maioria da sociedade acha que nós, moradores de rua, somos ladrão, vagabundo...somos uns “pidichão”, né? Mas assim, eu não vejo por aí o caminho. Pidichão até sim, até concordo, porque entre roubar e pedir, eu prefiro apertar uma campainha ali e pedir um prato de comida, do que ir ali e assaltar um cidadão. Então, a respeito de os donos da rua, não é que a gente seja os donos da rua, é que, infelizmente, a gente mora na rua. E aonde a gente tem um local pra se atirar? Tipo assim, mora na rua, tô com sono, onde vou me atirar? Onde eu houver lugar pra me deitar, pra mim tá bom, tô na rua. Eu não tenho casa pra ficar numa boa... A sociedade acha que nós somos os donos da rua, mas não é por aí.
GT: Cara, eu tava querendo ouvir, de vocês, quantos tipos de risco vocês sofrem na rua?
A: É que, na rua, existe muita maldade. Tem pessoas, amigos nossos da rua, que não dormem de noite e dormem de dia. Ou então, tu não dorme de noite. Tem que dormir aqui, oh, um aberto e outro fechado. Tu não sabe quem é que tá ali. Na rua, existe muita maldade.
D: Botaram fogo em mim. Eu tava dormindo, acordei, tava pegando fogo em mim, nos meus pés, nas cobertas, tudo. Eu peguei, me levantei.
D: Até hoje, eu não sei quem foi, né? Mas, assim... Em questão disso, também, os playboys, ninguém gosta deles. Eles falam pra gente: “Vocês são tudo uns chinelo que...” Eles falam que a gente rouba eles, tudo isso. Eu não sou chinelo, eu não roubo. Não roubo nem de morador de rua, não roubo nem de rico. Faço a minha correria tudo, mas eu prefiro não roubar. Na realidade, o ladrão sabe onde tá o destino, ou é na cadeia, ou é no cemitério. Quando era de menor já me envolvi, não tenho problema de falar. Hoje, já não me envolvo mais. A Brigada não tá deixando nem a gente ficar sentado mais! Eu tava sentado ali perto do xis ali, sabe, aí veio o brigadiano: vamos andar, vamos caminhar, oh, não quero ninguém sentado aqui, vamos circulando. Não pode...tem um pessoal que vem comer xis ali, às vezes sobra uns pedaços de xis e dão pra gente, refri também. Aí, eu fico sentado ali, esperando. Aí, vem o brigadiano, do outro lado da esquina, já atravessa a rua. “Cala essa tua boca” e já vai chutando a gente. Tava eu e o Negro ali sentado ali, tomando um refri, uma coisa, e chegou (o brigadiano) dando paulada nas tuas pernas, ainda pegou meu refri e botou tudo fora.
D: A Yeda, mandou tirar todo o pessoal da rua. Mas vai botar onde? Dentro da casa dela?
Marcela [MA]: Eu queria saber, se vocês gostariam de deixar de ser morador de rua ou não?
A: Eu gostaria muito e adoro, quero ainda, ser né? Que eu tive família, tudo, tive mulher, tive filha, tenho uma filha coisa mais linda, minha filha, tive casa, tudo, mas por causa das...eu perdi tudo. Perdi mulher, perdi filha, perdi casa, perdi emprego. Tinha meu emprego, tudo, ganhava meu salário. E depois que eu perdi a minha mulher, eu virei a cabeça para o outro lado, eu não digo que pro lado da marginalização...
A: Eu trabalhava numa fábrica de calçado na Vale do Real.
CG: Tu perdeu o emprego por quê?
A: Não, não, muito antes, eu pedi para sair...depois que me separei da mulher pedi as contas, deixei em casa e vim embora. Procurei ela numa época, perguntei se ela queria me cobrar a pensão. “Não, não quero pensão, só quero que suma”...
A: Eu pretendo sair daqui. Esse é o meu maior sonho. Falta que, na verdade, eu não tenho condições. Não tenho uma renda que eu possa... Tipo assim, alugar uma peça, ou , sei lá, comprar uma peça. Que eu não tenho renda, eu vendo, eu vivo só do jornal e sábado e domingo eu cuido carro, mas isso não.. não tem como eu me manter no caso, né? Pagar um aluguel e um dinheiro, para que eu possa me vestir, me alimentar.
CC: E antes do jornal, tu vivia de quê?
A: Antes do jornal eu vivia juntando uma coisinha na rua pra comer ou apertando nas campainhas e pedindo uma comida.
GT: Levando muito não pela cara...
D: Eu podia ter a minha casa ainda hoje lá onde mora a minha prima...Agora, como tem muito tráfico, os caras pra te dar uma casa, eles querem que tu trabalhe pra eles. Até tive várias propostas: te dou comida, tudo, mas tu vai ter que trabalhar na boca de fumo, vai ter que trabalhar de campana. Eu não quero me envolver com tráfico, não quero me envolver com criminalidade, eu prefiro ficar na rua. Não adianta eu ter casa correndo risco, né? E isso daí não me leva a nada. Se eu quisesse me envolver com o tráfico de droga, ou mesmo com marginalização, criminalidade, eu já não estaria aqui, conversando com vocês, trocando uma idéia, o que eu acho que é bom e o que não é bom pra mim. Cada um pensa o que quer de si, né?
MM: Essa pergunta que a Marcela fez, se querem sair da rua, se gostariam de sair...acha que te adaptarias numa casa?
Gi: Eu quero morar em Canoas. Mas só que... mais de Porto Alegre, eu vivo há 15 anos na rua. Eu tô com 33, vou fazer 34 agora em setembro, dia 18 de setembro...pegar e arrumar um serviço, que eu possa pegar um pouquinho, mais ou menos, que eu possa me manter, e comprar um terreninho...em Porto Alegre, num bairro aqui por perto, perto do Centro, onde eu gosto mais desses lados pra cá, né? Eu não quero nada de luxo...moto também, né? A moto também não sei dirigir, mas...os meus irmãos me ensinando. Mas o sonho que eu quero é só isso...sair da rua, arrumar um terreninho que fique aqui em Porto Alegre, uma peça de material, ou duas peças para mim é suficiente. Aí depois, eu pretendo ter uma garota. Na verdade, eu tenho uma. Porque, apesar de deus, ele não quer o corpo...o corpo fica na terra e a alma sobe, ou fica vagando ou vai por céu, né? Tem que pensar na sorte. Não quero negócio de rico dentro de casa, não quero luxo, quero coisa simples.
MM: Maneco, gostaria de sair da rua?
M: Eu tenho casa, né? Eu trabalho numa borracharia também.
MM: Mas qual é teu sonho, cara?
M: Meu sonho é ter uma casa, pegar quase todos moradores de rua que precisam...que gostam de morar em casa, né, meu? Na rua tem um lar. Tenho minhas irmãs, irmão, filho, tenho um filho com outra mulher também. Bah, eu me separei já faz 3 anos e pouco. Eu gosto mais de ficar na rua, não gosto de ficar dentro de casa. Dentro de casa não dá pra fumar, tá ligado? Tem hora pra jantar, tem hora pra tomar banho, tem hora pra se levantar, tem hora pra dormir também, que é 8 horas... Sete horas é a janta, 8 horas tá todo mundo dormindo. É isso aí que eu não gosto, meu, e na rua não tem horário de dormir. Se eu quero dormir...3, 4 horas da madrugada acordado. Eu gosto de ficar mais na rua. Se eu fosse rico mesmo assim, ajudava um monte de morador de rua. Tem tanta gente que não gosta de morador de rua...Mas eu, assim, meu parente é o Fogaça, né, meu? Nunca gostei de falar isso aí. Tá certo, é meu parente, mas não gosto dele, nunca gostei. Nem falo com ele, só meu pai.
MM: O Maneco e o Don saíram da rua e, agora, tão em casa. Como é que foi passar da rua pra casa?
Don: Agora, eu tô melhor, porque eu conheci meu pai com 23 anos de idade, sabe.
NI: E agora tu moras com ele, Don?
Don: E agora eu moro com ele, faz 1 ano que eu moro com ele.
MM: Tu ficou dos 15 aos 30?
Don: 23 anos...quando eu conheci meu pai, eu saí da rua. Na rua é diferente. Em casa a gente não faz as coisas que fazia na rua. A minha mãe é diferente do meu pai. O meu pai trabalha, fuma cigarro, a caipirinha dele. A minha mãe já é diferente, ela já usa outras coisas...
CG: Quantos de vocês já usaram computador, sabem, pelo menos, olhar no computador...
M: Nós fizemos, eu, o Seco, a Michele, e...mais uns dois aí que não era do grupo...lá no Gasômetro. Fizemos um curso lá de informática. Quem nos botou nisso aí foi a Carla e o Dudu...dois meses, sessenta dias. Não faltamos 1 dia, fomos lá, fizemos todinho esse curso aí. Tiramos foto, bah, tava muito bom.
D: Não, eu de computador, não... eu só tinha o curso de datilografia. Na época que eu estava no patronato, lá fora, eles não tinham computador. Mas eu sei mexer um pouco.
D: Eu gostaria. Se eu tivesse computador, eu estaria...
M: Ah, eu uso toda a hora, na lan house toda hora acessando...
CG: O que tu acessa?
M: Ah, eu acesso sobre gatinhas...A Michele não pode saber, se não me mata...ela já tá grávida.
A: Vai sair um curso ali no restaurante popular, no bandeijão e eu me inscrevi.
D: Eu acho muito legal que ali no SENAC tem vários cursos. Eu até fiz um curso lá de marcenaria, tenho diploma tudo, no atelier e eu acho muito legal as atividades que eles fornecem. Tinha capoeira, aula de dança, marcenaria...Mas é muito legal as atividades que eles propõem.
NI: Então, todos esses problemas que vocês falaram, o acesso à saúde, alguns problemas com saúde, o problema do clima em Porto Alegre,
dos toaletes, o que vocês acham que poderia ser feito? Tanto pelo morador de rua, quanto a cidade em geral?
D: Que nem a Yeda colocou que tinha que tirar os moradores da rua, né? Então, que ela fizesse mais casas de pouso para moradores de rua. Se for tirar todos os moradores de rua e botar nos albergues, não ia ter lugar nos albergues que têm aqui, que são poucas casas de passagem que tem. São 4 ou 5 albergues. Então, se fosse tirar todos os moradores de rua daqui, não ia ter onde pôr. Então, que adianta ela lançar isso daí, vai botar morador de rua aonde?
Fotos: Têmis
Foto do Maneco segurando a RG: Eduardo Seidl
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Blogagem coletiva com Moradores de Rua
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