segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Sabe qual era o lema de Zapata?

André de Oliveira

― Sabe qual era o lema de Zapata?
Terra e liberdade!

Biblioteca Pública Estadual. Início de noite fria y está quase fechando expediente ao público.
As Letras recebem o RAP em seu tradicional templo. Centro. Bate-papo de final de tarde. O RAP saindo da correria do dia. Jogo rápido. Uma leitura. Vida do herói revolucionário.
Entra Prego. Da Ala dos Preto do Corre. Bonja S/A. Lado Leste de Porto Alegre. Vila Bom Jesus. Identificação.
Chega rápido. Pinta sempre por lá quando decide pesquisar y aprofundar idéias em alguns temas. Valoriza o espaço público para a leitura – mapa do conhecimento.

― Eu tenho certeza que o cara que escreve música e que escreve poema é sempre bom pegar outros exemplos de linguagens nos livros. Por que se tu ficar limitado ao que tu fala no dia-a-dia, tu acaba limitado a pular algumas barreiras. Tu pára num muro que é a própria ignorância da gente de não ir procurar. Entendeu? Por que não é burrice ― mira certeiro Prego a blindagem intelectual às classes populares.

A ciência da astúcia. É subdesenvolvimento da expressão como originalidade e estilo de sobrevivência. A afirmação cultural não como meta, mas ponto de partida. Raízes resgatadas. Estética renovada. Difusão. Propagação de saberes. Nem sempre culto, mas engajado e reflexivo.

― Se os caras do RAP quisessem aprimorar para saber escrever melhor, aprender outros vocabulários: é legal ler bastante. Se o serviço público [de bibliotecas] fosse mais divulgado, viriam mais pessoas procurar livros.

Na música. Faz ritmo y poesia. Dupla de inspiração na contestação. Pé-no-chão, seriedade e revolução – insumos da criação artística. Aduba com criatividade. Ginga. Potência no som. Certezas na fala. Há muita opressão a ser liquidada.
Y há o cuidado de deixar a palavra na linha do pensar, por isso Prego se coloca na responsa ao falar da ideologia construída na parceria com o Gibs:

― Não digo que a gente tenha uma das melhores músicas, mas uma das melhores intenções de fazer música. Por que tudo que a gente fala é de conceito mesmo. A gente não está falando só pelo fato de querer falar, querer rimar. É o que a gente vive mesmo. É pelo que a gente corre – coloca a idéia com tranquilidade.

A impressão da tatuagem do braço esquerdo. Prego escolheu a biblioteca como cenário para a filmagem d’uma sequência de apresentação da Bonja S/A para abrir a faixa que a banda terá no DVD do Concerto II Cohab é só RAP, já realizado lá no Rubem Berta, no dia 31 de julho deste ano. Fica esperto, Malandro. Produtora Sítio na organização. Tiririca e Barriga na coordenação da parada.
No saguão de entrada. Depois de um lero com o guardinha, Prego pára no setor de atendimento y pede para consultar livros sobre Emiliano Zapata. A câmera começa a rodar. É pra passar a mensagem. Luz à luta camponesa pelo lado do universo urbano da guerrilha artística. Ação local. América Latina. Fé na transformação que amplia consciências. A luta do povo é a única verdadeira.
O funcionário da biblioteca volta do arquivo de consulta, cruza por Prego y vai buscar um livro da História do México. Encontrado, agora, o caderno é do Prego. Folheia. Escolhe a página, mostra foto de Zapata e fala na categoria:

― Este cara pra mim é incontestável. Por que ele foi defensor dos princípios e não defensor dos homens. A maioria destes caras que falam em revolução, eles são defensores dos homens. Zapata foi defensor de valores valiosos. E Zapata era a favor da geração dele, das que iriam vir e das que passaram antes – justifica, colocando o líder mexicano como um ícone a mais na sua cartilha.

É reforma agrária no latifúndio improdutivo das estantes enfileiradas de livros empoeirados do Estado que não valoriza a leitura. A oralidade é marca registrada da comunicação e da sabedoria no Brasil. RAP e Repente. De repente, novas fronteiras comunicacionais.

― Até hoje no México tem gente que corre pela mesma ideologia de Zapata. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chiapas. Os zapatistas adotaram métodos de 1917, viram que era uma forma correta, reta de fazer a revolução no México.
Na real a gente fala muito em revolução, mas na verdade não há exemplos no nosso país. Nós temos exemplos de ditaduras aqui.

A tática de combate do Prego é difundir o contra-conhecimento da cultura popular. Estratégia do abate: instrução do povo como arma intelectual revolucionária para sair das amarras y farsas seculares impostas pela burra classe elite econômica parasita que contamina a imaginação comum. A concentração de riqueza faz ignorar os verdadeiros problemas. A periferia é terreno fértil de pensamento-ação de superação. O RAP e o hip-hop dão surgimento a uma nova elite política no Brasil que ainda está para ser colocada na sua devida importância. Só que a rapaziada não almeja poder. Quer respeito e dignidade p’ras suas comunidades. O futuro a Deus pertence, irmãozinho. E o caminho está sendo trilhado com seriedade.
A instrução do RAP ultrapassa as cadeiras do ensino fundamental e os conceitos televisionados. Escola técnica de versos e sabedoria, por que nasce da dificuldade de acesso à informação de suas próprias raízes. Aprumo. Educação não está restrita a assumir a razão dos mandantes. Tradição, mestiçagem, misticismo e rebelião capacitam hoje a juventude brasileira pobre que sobrevive na Babilônia dos outros. Movimento hip-hop é o que representa a maioria urbana. Os heróis da Pátria não são os heróis do Povo. Leia o RAP. Escute verdades. Sabotage a desigualdade.
A História oficial difundida e ensinada nas instituições de Estado não respeita a civilização africana brasileira carregada de lá pela via da escravidão e o genocídio dos índios nativos, ambos peça de engrenagem para o avanço do colonialismo selvagem. São os verdadeiros trabalhadores brasileiros até hoje. Quem toca pra frente este país. Tem cantor de RAP no corre da venda de tênis naike dos chineses na Esquina Democrática, trabalhando no Departamento de Perícia da Polícia Civil, trampando em escritórios, cuidando e lavando carro na rua, selando carta de Sedex nos Correios. Porrada de bicos. É o Sindicato do RAP. Trabalhadores uni-vos! A cantar a força da transformação. Celebridade, que porra nenhuma.

No final da gravação é feito um pedido. No improviso, Prego canta uma das letras da Bonja S/A no meio da sala de leitura da biblioteca. Olhar sério, mirando fundo da lente:

― Império de Guerra. Conexões formadas. O início da revolução não-armada. Ponto-de-vista? Bandeira Sulista. Tráfico de informação, começo da conquista. Educação para a violência seria a cura. E antes da pena de morte, cultura, instrução, estrutura. Principalmente com a polícia e pro governo. Apura?
Chega de promessas, falsos profetas. A esperança kamikase que nos afeta.
Rotina de merda. Alvo fácil. Sem apoio: a queda, o descaso. Lamentável. Judaria sistemática, tática de abate antes do combate. Ditadura resgatada por trás da fachada. Ordem e progresso sem acesso a terra amada. Libertinagem escancarada. Hoje é televisionada. Apoio barato. Amizade forjada. Farsa todos os dias. Descaradamente. A venda da desgraça.

Na saída da visita, do outro lado da rua, encostado na parede de pedra que sustenta a estrutura do Tribunal de Justiça, Prego diz que o caminho é sempre pelo certo. É sempre tentar fazer o máximo de certo. E p’ràqueles que possam pensar “mas o que é fazer o certo?”, ele explica que é não prejudicar ninguém. É tu fazer o melhor de ti sem prejudicar ninguém y nem a ti próprio. Nas músicas da Bonja S/A, no jeito de pensar, se tenta passar muito isso. Espírito de comunidade.

― Minha vivência na Bom Jesus começou desde criança. Vários me apoiaram. Não tenho o que falar lá da rapa do Coqueiro. Me apoiou, me ensinou muitas coisas. Na real eu aprendi a ser homem lá com a Bom Jesus. Entendeu?
Por que a gente sai pro mundo aí e a gente vê que não é como contaram pra nós na escola, por que o mundo é tirano e tem que caminhar ligeiro pra não ficar pra trás.
Ser Bonja S/A. Ter nascido e ser criado na Bom Jesus, tem que ser de fibra. Só os durinho permanecem.

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