sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Somos

Jefferson Pinheiro

Eu sou a profissional do sexo com nojo do próprio corpo, vendo carinhos falsos como flores de plástico. Sou o rico que odeia o pobre. O pobre que odeia o rico. Sou o assassino fardado. O policial envergonhado da farda. Sou mais uma criança que morre de fome enquanto o mundo ri e se diverte. Sou o protesto na porta da fábrica. O sindicalista encomendado ao matador de aluguel. O homem-bomba aos pedaços antes da bomba. A menina com o rosto refletido no esgoto. Sou a deficiente na cadeira de rodas rasgando solitária as pedras da rua. O cara que saiu pra estuprar a garota após uma overdose de sexo pela TV. Sou o idoso que apodrece na fila do hospital público. A menina negra que só tem bonecas loiras pra brincar. Sou o voto nos filhos da puta que vende o futuro do país. O operário que não almoça. O rio poluído com os dejetos químicos das empresas. Sou o lobby de políticos pra favorecer latifundiários. O trabalhador mantido escravo na fazenda. A criança indígena assistindo desenho animado pela vitrine. A criança sem doce nem brinquedo que o noel esqueceu no Natal. Sou aquele que sofre em silêncio o que a vida lhe deu de presente. Sou os olhos fundos, gordos de lágrimas. Sou o cão sarnoso com a espinha quebrada a pau. O veneno no bucho do cão que desagradou ao vizinho. Sou o cego esperando ajuda pra atravessar a rua. A dignidade que não se quer enxergar no olhar do morador de rua. Sou a falta de oportunidade num país injusto. A menina que o pai vendeu ao gigolô. O menino pra quem você fechou o vidro. O cara comendo os restos do seu lixo. Sou a grávida descalça com um sorriso estranho, caminhando na chuva de inverno em meio ao trânsito. A menina que desmaiou de fome na escola. A seringa do pó. O sangue infectado com HIV. Sou a fatalidade que você atropela justamente quando encheu a cara de álcool. Sou mais um agricultor sob a lona, com bandeira e sem terra, plantado ao longo da BR 290. Sou mais um trabalhador sem trabalho, mais um número nas estatísticas. Eu sou o filho sem pai, a mãe sem marido, o pai sem mulher nem filho, sou mais uma família que se perdeu. O animal que nasceu pro abate sou dinheiro nas mãos de quem comprou a minha vida e vendeu a minha morte. Sou mais um menino sem teto, sem família nem governo que não tem pra onde ir e sobrevive de migalhas.A pobreza espancada e humilhada. Sou o medo na manhã do carcereiro, do presidiário, da visita íntima. Sou a manhã sem luz, presa, sufocada contra o tempo. O preconceito e o dinheiro na sentença do juiz. O suicida caindo do 17º desandar. A inundação das lágrimas que arrebentam com todas as portas e cavam todos os túmulos. A ligação que não foi feita, o abraço que não foi dado, a palavra de carinho que não foi dita, sou o gesto de amor que não se realizou. A cruz de braços abertos que vai se jogar do topo da igreja. Sou o suicídio da fé. A Constituição servindo ao pó na estante. A espinha na qual se alojou o projétil. O crânio prometido pra bala de fuzil. Sou a criança sem escola nem infância. O homem inventado por Deus, aprendo enquanto me arrebento. Sou o amor apodrecendo em frente à porta. Quem não tem pra onde correr. A resposta para o que você não quer perguntar, a explicação para o que você não quer saber. A esperança que se perdeu do futuro.

Mas também sou a consciência que não se apaga, a voz que não cala e o punho cerrado contra a tua cara. O jornalismo e a catarse que não têm preço e o suor dos que não desistem de lutar. Sou o que guarda o segredo da dor. O que está por trás do que ninguém entende. Sou eu, você e todos. Porque não exista quem não esteja no sofrimento dos outros nesse dia comum perdido no espaço e no tempo.

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