sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...

Fabiana Mendonça

E a família senta a mesa para o abençoado almoço, aos berros com os seus e em silêncio servil frente à televisão.
E a filha reclama com os pais pelo imperdoável ato de não poder consumir um produto qualquer novo, cheiroso, dentre tantos que a sociedade apresenta.
E o marido que briga com a mulher por ela ter se tornado parte da mobília e ela exige em troca que ele ainda seja a ilusão de um tal príncipe encantado tão vendido em histórias capitalistas-infantis.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E os governos e suas amigas empresas buscam mais controles e maior poder em outros territórios além-mar. E políticos “representantes” do povo, que em seus currículos jamais consultaram o interesse popular, criam leis e governam para si, para os amigos, parceiros e financiadores.
E o mundo é regido pelo poder financeiro, onde vidas são traduzidas em números, sentimentos são manipulados pela publicidade e tudo recebe um código de barras com seu valor pré-estabelecido. O dinheiro é sua religião dominante.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E numa mesa de bar um grupo de amigos bebe há várias horas e nem sequer se cogita em falar em crianças, muito menos naquelas que desfalecem em algum lugar do mundo.
E nos corredores do alto poder, crianças não entram, pois o lugar está abarrotado de quem dá mais, de ternos, gravatas e tailleurzinhos comprando ou vendendo a vida de mais uma dessas inocentes criaturas prematuramente arrancadas do mundo.
E ninguém fala sobre isso, não nasce um mísero rubor de vergonha na cara de nenhum santo cristão, ateu, ou seja lá que deus escolheu para seguir.
E não salta uma indignação sequer em algum peito que ainda tenha algum órgão a pulsar.
E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo...
E não acorda memória nenhuma que lembre o que é ser criança. E essas que estamos fingindo desconhecê-las, no curso normal da vida têm seus corpos desprendidos das almas cedo demais.
E UMA CRIANÇA MORRE A CADA CINCO SEGUNDOS NO MUNDO!
E O QUE TU FAZ A CADA CINCO SEGUN-DOS DA TUA VIDA?


E algum título descreve essa situação?

Vem cá, por que tu me olha assim? Vejo medo em teus olhos e repulsa em tua expressão. Por que muda de caminho para não cruzar comigo? Tu desvia o olhar e finge que não me vê. Por que amaldiçoa minha existência? Em rodas de amigos finge compaixão e sozinho em teu egoísmo sente-se aliviado pelo assassinato de mais um dos meus?
Ei, olhe para mim. Mire bem meu rosto e seja franco contigo. Acredita que sou assim porque quero? Olhe para meus pés. Uso chinelos. Acha que não sinto frio no inverno? Acha que estou precariamente vestido porque quero? Crê que peço comida por gula? Que cheiro cola para tornar mais divertida a vida? A cola é o meu cobertor, o meu agasalho nas noites frias de um inverno sem piedade. Te incomodo porque urino em tuas calçadas e defeco em tuas praças? Meus filhos ranhentos não são dignos de brincar com os teus? Acaso os sonhos infantis não são os mesmos, recheados de super-heróis, grandes partidas de futebol, uma casa arrumadinha num futuro colo-rido? Todos fazem parte da mesma geração que nos sucederá. E onde está a diferença?
E tu, o que faz por mim? Crê que não tem responsabilidade sobre como vivo? Olhe para longe do teu umbigo. Também tenho umbigo. E tenho outras marcas de violência, outros buracos de bala, outras tentativas de me expulsarem deste mundo. E este mundo também não é meu? Também não mereço casa? Por que não me dá emprego? E por que não me educa?
Não me censure por ser a conseqüência da tua falta de ação. A cidade também é minha. As ruas também são minhas. Mas antes eu as tivesse como trilhas para bem viver. Antes eu as não usasse para dormir.
Sim, sou morador de rua.

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